sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Nº00 – dez./2009 ISSN 2176-8005

Cinco segundos para finalizar


Cleber Lizardo de Assis, Psicólogo, Mestre em Psicologia/PUC MG



Os eventos e fatos noticiados pelas diversas mídias acerca dos seqüestros e assassinatos por homens de todas as idades e que não aceitam o fim de um relacionamento amoroso podem evocar diversas hipóteses de respostas dos especialistas das mais diversas áreas. Não fecharemos questão.

Essa cena, somada a outra cotidiana e corriqueira presenciada dentro de um ônibus dia desses, me provocaram algumas reflexões sobre a cena contemporânea e algo que chamarei de cena pática.



No ‘busão’ em Beagá [cena corriqueira]

Deslocava-me por BH, a caminho da universidade e nem precisa dizer, na típica ‘correria’ e lutando contra cronos, o senhor do tempo representado pelo relógio; dentro do ônibus, presenciei a seguinte cena que poderia ser vivida em qualquer esquina do país: quatro meninos, adolescentes com cerca de 16 anos entraram com mochilas, vitalidade e suas conversas típicas; assentaram e diante de uma parada do ônibus num ponto, um deles se levanta até a janela, troca olhares e palavras com uma menina do lado de fora, negociam seus orkut’s e combinam de lá se encontrar; os colegas celebram a conquista do amigo e o felicitam pelo sucesso na abordagem amorosa num tempo tão curto, dizendo: “olha o cara, que fodão, cinco segundo para finalizar”.

Relance sobre a cena do ônibus: os ‘5 segundos’ poderiam se referir a um tempo para apenas encerrar um ciclo de conversa, uma etapa, algo metafórico e com a dica de seguir a conversa mais tarde; mas parece haver um ‘algo mais’...



Tempo do pós-tudo [cena contemporânea]

Outra cena que pode ser colocada sobreposta a anterior, seria a da atualidade que alguns chamam de pós-modernidade, marcada simultaneamente pelo fascínio e descrença na ciência e na tecnologia, pelo enfraquecimento de figuras-mestres da civilização como Deus (afinal, dizem estar morto* ), na rapidez com que tudo é experimentado (é a era do urgente!), pelas possibilidades de consumo jamais vistas e no predomínio do corpo sobre qualquer tipo de interioridade ou subjetividade (afinal, imagem é o que vale).

E tudo isso marcado pelo excesso, pelo extravasamento, onde se joga tudo pro ar.

Importante notar que nos últimos anos, sobretudo a partir da década de 80, vimos surgir um dos símbolos e emblemas de nosso tempo rápido, urgente, fluido e sem os horizontes das utopias: a música eletrônica emergiu jogando ritmicamente com o tempo, flertando com a tecnologia e acelerando ainda mais os batimentos da cultura. Mas nada contra o estilo musical, ela é apenas símbolo de algo...

Os meios de comunicação de massa também explodiram e temos na internet outra revolução em categorias como tempo, espaço e performances de todos os tipos; com a predominância do corpo e com o “declínio da alma”** , de elementos de uma interioridade em desuso, resta esteticizar o ser humano através de toneladas de pesos, litros de silicone e quilos de remédios.



Do horror ao amor [cena pática]

A palavra pathos refere-se às paixões que habitam o humano e que, em muitos casos, o deixam submetido, passivo e tomado pelo seu poder, causando-lhe sofrimento; dessa palavra deriva patologia, que sinaliza as paixões tantas que dominam o humano atual para além dos antigos sete pecados capitais; cena pática, portanto, é a aquela vivida de alguma forma por todos os humanos.

Ocorre que os impactos da cena dois sobre a cena um estão carregados de algo que discutirei aqui na cena três, podendo levar a outras cenas mais, marcadas por uma carga de sofrimento individual e social, sobretudo por nossas crianças e adolescentes.

É possível, por exemplo, encontrar crianças, adolescentes e jovens que não sabem esperar (adultos também, claro!), que ultrapassam quaisquer limites e que vivem no tempo do urgente, sobretudo para consumir desenfreada e compulsivamente; crianças, adolescentes e jovens desiludidos, sem expectativas futuras consistentes, consumidores ávidos e também atualizadíssimos das novas tecnologias; crianças, adolescentes e jovens reféns da corpocracia e dos ditames do mercado capitalista que a cada dia aperfeiçoa os modos de escravizar seus corpos pelo consumo.

Claro, os adultos com uma aumentada expectativa de vida e uma complexa infantilização ocorrente, se esvaziam de seus papéis e autoridades, e se tornam inaptos às funções maternas e paternas; mais uma vez, nossas crianças, adolescentes e jovens ficam reféns de mídias a serviço de um mercado onipotente e do deus capital.

Sem recursos simbólicos consistentes, como por exemplo, a capacidade de esperar, de lidar com as frustrações e limites, de dialogar e negociar com o outro, de ter um mínimo de culpa e responsabilidade por seus atos; sem esses recursos subjetivos nossas crianças, adolescentes e jovens partem para encontros e vivências sexuais/amorosas; mas como essas vivências tem sido experimentadas em nosso tempo?

Da mesma forma como tudo vem ocorrido em nossa atualidade: não se relaciona, pega-se; não se beija com “qualidade”, mas numa quantidade quilométrica; a menina ou o menino já não existem como pessoas pois também foram reduzidos a meros objetos a serem usados e descartados.

E as cenas-conseqüências do cotidiano doente são essas: uma infância-adolescência-juventude que não aceita limites e o ‘não’, já que hoje tudo é possível e permitido, e se usa dos corpos como brinquedos vazios de sujeitos; uma infância-adolescência-juventude intolerante e raivosa, vítima fácil de ‘algo’ impessoal que produz violências de todas as formas; que ainda nem se conhece e que vão se apropriando de outras pessoas em pseudo-relações amorosas e sexuais; enfim, meninos que matam meninas, sob a justificativa de amor.

Mas lamentavelmente é esse o amor que vem sido aprendido: um pouco de afeto trocado por muitos presentes, sem limites a suportar, nem pessoa a respeitar, sem relação para se envolver, sem tempo a esperar e sem paciência para aprender com as paixões (para Ésquilo se aprende também com o sofrimento, paixões, frustrações).

Mesmo sob o risco de acusação de um novo moralismo, parece haver um mal-estar nas relações atuais em que a vida é uma mera cena, em que o outro pode ser, literalmente, finalizado e eliminado em cinco segundos.
_________
* Sem uma ampla e profunda discussão filosófica, mas cf. NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência, §125.
** Cf. KRISTEVA, Júlia. As Novas doenças da Alma. Rio de Janeiro, Rocco, 2002.


Cena poética:


ESQUIZOFRENIA





parte te quer

junto a mim



outra parte

longe daqui



parte te engole

outra parte devolve



parte te vê

outra parte descrê



parte de mim quer bem

outra parte desdém







SUBLIMAÇÃO




estudar

estudar

e

estudar





sublimação

do beijo

que eu queria te dar



Poemas integrantes da coleção “PSI O QUÊ? poemas aleatórios, ul-trágicos e mani-cômicos”, Kebel Assis, BH, 2004.



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