O umbigo de um povo é o centro do mundo?
Cleber Lizardo de Assis*
Nas ruas de Buenos Aires...
Obviamente, era de se esperar que um e outro taxista não fosse um poço de simpatia, que todos garçons fossem atenciosos, que os transeuntes fosse solícitos em informar a localização correta de uma cale (rua).
Nessa viagem de janeiro à capital dos hermanos encontrei de tudo, como em qualquer esquina de qualquer capital desse “mundo de Deus”: acotoveladas nas calçadas, gente acabrunhada nos atendimentos, mal-humorados impacientes com a nossa fala ou gente fazendo piadas de nosso futebol.....mas, não apenas de coisas desagradáveis se vive um estudante de doutorado em terra de Evita.
Houve a menina que, interessada e simpática, dava informações e sorrisos sem esperar propina (gorgeta), o taxista que dirigia de bom humor e recepção calorosa, a também estudante trocando informações sobre os pontos turísticos de recíprocos países, o dono da loja de CDs com sua inflamada defesa da MPB (isso mesmo, o cara conhece mais artistas brasileiros bons que muitos de nossos compatriotas)....em suma, no pesar da balança, fiquei no lucro em relação às minhas primeiras impressões a respeito do povo argentino.
Julgando um povo pela bola (ou pelo seu ídolo futebolístico)
Isso equivale àquele ditado de “não se julgar um livro pela capa”, me fazendo elocubrar sobre uma hipótese que sociólogos ou psicólogos sociais podem estudar posteriormente: pode apenas o futebol e a rivalidade entre Pelé e Maradona marcar as nossas recíprocas impressões, preconceitos e discriminação entre povos brasileiros e argentinos?
Por traz dessa pergunta-problema, comecei um auto-exame sobre os possíveis elementos-fatores de uma querela quase inconsciente que parece percorrer os tratamentos pessoais por que passam brazucas por lá e hermanos acá.
Aliás, uma colega de doutorado, casada com um argentino (será ela seduzida pelo tango passional ou será ele apasionado pelo swing do nosso samba? Outro mistério para um estudo de caso), me confidenciou: como o marido sofrera hostilidades gratuitas em nossa pátria-mãe não tão gentil! E pasmem: apenas por ser argentino.
Pasion coletiva
Fato que o futebol é mobilizador de intensos sentimentos de amor e ódio, num mix de intensa paixão, engendradora de traços que marcam a subjetividade e identidade do sujeito-torcedor.
Esse torce-dor se encontra em estado pático, ou seja, passivamente dominado pelo furor emotivo primitivo, catártico, possibilitador de sentimentos de proteção e onipotência, elementos que cada sujeito busca em seu processo identificacional, intimamente relacionado ao seu narcisismo.
Acertadamente, Caetano Veloso cantara que “Narciso acha feio o que não é espelho”, rementendo-nos ao mito de Narciso, sujeito que, enfeitiçado pela sua beleza projetada nas águas, morreu hipnotizadamente afogado. Esse narcisismo cantado, pode ser aprofundado nos estudos freudianos sobre o tema, onde discorre sobre seu aspecto saudável e também sobre os distúrbios relacionados.
O narcisismo, trocando em miúdos, equivale a nos considerar com nossos pontos de vistas, desejos e julgamentos, a medida-padrão para avaliar o outro, ou ainda mais miúdo: nosso umbigo torna-se o centro do mundo.
Um equivalente desse narcisismo individual é o que, na antropologia cultural, denomina-se de etnocentrismo. Assim posto, equivale dizer que, tanto o povo brasileiro como o argentino, possuem seus umbigos que lhes servem, ora para contribuir para um sentimento de identidade de nação, como para, em casos passionais, pré-conceituar e discriminar o outro como inferior a si.
É esse sentimento coletivo pernicioso que está por traz dos nacionalismos e movimentos xenofóbicos que levam um país a hostilizar e subjugar outros povos e grupos étnicos minoritários, desde tempos remotos até a nossa modernidade. Um outro “ismo” que precisamos evitar.
Mas nesse caso particular de querela entre brasileiros e argentinos a mediação distorcionante parece ocorrer através desse elemento cultural avassalador de emoções que é o futebol, potencializada por uma indústria midiática massificadora que nos impede de ver esse Bueno pueblo para além de nossos umbigos etnocêntricos.
Pelé e Maradona, isolados, não podem ser a medida-padrão de um povo e de uma nação. Pena que os produtos do mass media que consumimos diariamente nos impede de saborear a diversidade que existe para além de nosso próprio quintal. E me refiro à quase desinformação que temos sobre a cultura de nossos vizinhos latino-americanos, preterindo-os aos enlatados euro-americamos que engolimos diáriamente.
Me perdoem Pelé e Maradona, com todo o significado que ambos possuem para seus respectivos povos, mas eles não podem, sozinhos, nos engolir em seus umbigos futebolísticos etnocêntricos.
Tenho minha dose de bairrismo, de saudade do Brasil quando fora, portador da tamanha falta que me fez o feijão daqui. Também tenho minha dose de narcisimo e etnocentrismo, pero no mucho! Precisamos sim, em matéria de preconceitos ou discriminações nacionalistas e xenofóbicas, de ampliar nossos horizontes, precisamos de buenos aires.
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* Psicólogo, Mestre em Psicologia/PUC-MG, Doutorando em Psicologia pela USAL/AR; Docente do Curso de Psicologia da UNESC, Cacoal-RO
[Cenas] é um periódico de psicologia e psicanálise, de produção independente e pode ser reproduzida desde que citada a fonte e a autoria; objetiva a discussão das cenas humanas na atualidade em perspectivas psi multidisciplinares; tem por base conceitos como acessibilidade, sociabilidade e conhecimento com relevância social – criador e editor: Cleber Lizardo de Assis – edições anteriores para baixar e circular: http://cenasdecadadia.blogspot.com/
[Cenas] visuais – especial Buenos Aires 2011
:
Desanimado? Por quê?
la vida és driblar la finitud
Fonte: Capela e Mausoléu do Cemitério da Recoleta, Buenos Aires/AR
[CENAS] poéticas latinas
:
gracias a la vida
De: Violeta Parra (Chile) – Canta: Mercedes Sosa (Argentina)
Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me dio dos luceros que cuando los abro
Perfecto distingo lo negro del blanco
Y en el alto cielo su fondo estrellado
Y en las multitudes el hombre que yo amo
Me dio dos luceros que cuando los abro
Perfecto distingo lo negro del blanco
Y en el alto cielo su fondo estrellado
Y en las multitudes el hombre que yo amo
Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me ha dado el oído que en todo su ancho
Graba noche y día grillos y canarios
Martirios, turbinas, ladridos, chubascos
Y la voz tan tierna de mi bien amado
Me ha dado el oído que en todo su ancho
Graba noche y día grillos y canarios
Martirios, turbinas, ladridos, chubascos
Y la voz tan tierna de mi bien amado
Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me ha dado el sonido y el abecedario
Con él, las palabras que pienso y declaro
Madre, amigo, hermano
Y luz alumbrando la ruta del alma del que estoy amando
Me ha dado el sonido y el abecedario
Con él, las palabras que pienso y declaro
Madre, amigo, hermano
Y luz alumbrando la ruta del alma del que estoy amando
Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me ha dado la marcha de mis pies cansados
Con ellos anduve ciudades y charcos
Playas y desiertos, montañas y llanos
Y la casa tuya, tu calle y tu patio
Me ha dado la marcha de mis pies cansados
Con ellos anduve ciudades y charcos
Playas y desiertos, montañas y llanos
Y la casa tuya, tu calle y tu patio
Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me dio el corazón que agita su marco
Cuando miro el fruto del cerebro humano
Cuando miro el bueno tan lejos del malo
Cuando miro el fondo de tus ojos claros
Me dio el corazón que agita su marco
Cuando miro el fruto del cerebro humano
Cuando miro el bueno tan lejos del malo
Cuando miro el fondo de tus ojos claros
Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me ha dado la risa y me ha dado el llanto
Así yo distingo dicha de quebranto
Los dos materiales que forman mi canto
Y el canto de ustedes que es el mismo canto
Y el canto de todos que es mi propio canto
Me ha dado la risa y me ha dado el llanto
Así yo distingo dicha de quebranto
Los dos materiales que forman mi canto
Y el canto de ustedes que es el mismo canto
Y el canto de todos que es mi propio canto
Gracias a la vida, gracias a la vida!
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